Monday, October 1, 2007

Lisboa: Homem disparou sobre a mulher e está em casa


Disparou sobre a própria mulher, levou-a até ao hospital e entregou o revólver à PSP de Belém, Lisboa. À luz da nova Lei Penal, é um homem livre. Basta que se entregue.

A vítima não morreu, mas o crime é indiferente “seja violência doméstica ou homicídio qualificado”, garantem ao CM fontes judiciais. Este crime ocorreu na semana passada e o agressor está em liberdade. Agora pode esperar dois anos em casa até ser julgado.Quando a discussão estalou entre o casal, ‘João’ (nome fictício) pôs fim à conversa com um tiro na mulher. Mas, por sorte, a bala só a atingiu num braço. O agressor apresentou-se à PSP com o revólver e, chamada uma brigada de homicídios da Polícia Judiciária, os inspectores foram confrontados com a nova lei.“Como se apresentou tem de se partir do princípio de que não há perigo de fuga” e, ao abrigo do Artigo 257.º, n.º 2, do novo Código, “o agressor não pode ser detido”. Independentemente do grave crime que cometeu, que neste caso é punível até 17 anos de cadeia: homicídio qualificado, por se tratar da mulher, apenas reduzido em um terço por a vítima não ter morrido.Desde o passado dia 15, quando o Código entrou em vigor, fica à solta quem cometer “qualquer crime” e se antecipar ao mandado de captura – “só tem de ser o próprio a apresentar-se à polícia”. É então notificado a comparecer em primeiro interrogatório judicial, “nunca antes de um mês depois”, mas fica em liberdade até ao julgamento – “sem perigo de fuga, não há prisão preventiva”. Entre inquérito, acusação e outros impasses legais, um homicida “pode passar um a dois anos em casa”.No caso de ‘João’, bastou-lhe no dia seguinte apresentar-se nos juízos de pequena instância criminal de Lisboa, onde foi julgado por posse ilegal de arma.A violência doméstica “é uma criminalidade especial, o agressor está por norma socialmente integrado e comparece voluntariamente às autoridades”. Por isso não lhe podem ser emitidos mandados de detenção e consequente afastamento de casa. Primeiro é presente ao juiz, às vezes um mês depois. Até lá fica em casa, o que pode ser fatal para a vítima .
VÍTIMA FOGE DAS AGRESSÕES E PERDE O DIREITO À CASA
O facto de o novo Código de Processo Penal não permitir ao Ministério Público afastar os agressores de casa, sempre que estes se apresentam voluntariamente às autoridades, “obriga as vítimas de violência doméstica a saírem elas próprias”, para fugirem do perigo. “Procuram abrigo na polícia, por exemplo, quando os agressores atravessam uma crise, enquanto eles ficam no mesmo sítio. E as vítimas perdem o direito à casa – depois de agredidas são novamente penalizadas”. Ou seja, o agressor é chamado às autoridades devido a uma denúncia, por um crime público que dá direito a prisão preventiva – punido de um a cinco anos de cadeia, mas com a ressalva na nova lei de ter sido englobado na criminalidade violenta. Mas, como se apresenta, não há mandado de detenção. E volta para casa. “Pelo menos um mês, até ser chamado ao juiz.” Entretanto a vítima de violência continua exposta ao perigo. Por isso, foge ela de casa. Quando o agressor chega a primeiro interrogatório judicial, o juiz já não aplica qualquer medida de afastamento: está sozinho e em casa, já não se justifica. “Tudo isto pelo facto de o agressor se apresentar voluntariamente às autoridades num crime em que, por norma, estão sempre disponíveis.”
"DIZ QUE É UMA ESPÉCIE DE REFORMA PENAL...", Plácido Conde Fernandes, vogal do Conselho Superior do Ministério Público Correio da Manhã – Concorda que a lei liberte agressores em flagrante delito e um homicida que se apresente à polícia voluntariamente?
Plácido Conde Fernandes – Com algumas precisões esta é a nova realidade. Dizia ontem o prof. Costa Andrade no CM serem anedóticos alguns aspectos dos prazos para a entrada em vigor. Passado o ‘terramoto’ da libertação de muitos presos preventivos a cumprir penas pesadas preocupam-me mais as ‘réplicas’ que estão para vir.– Este é um desses casos?– Sim, porque sempre que os tribunais estejam fechados esta reforma falha e “diz que é uma espécie” de equilíbrio entre os direitos das vítimas e dos arguidos. Os aspectos anedóticos são mais trágicos do que cómicos. – Como assim?– Uma patrulha da PSP presencia uma violenta agressão do marido à mulher e afasta-o. A mulher pergunta aos agentes: “O crime admite prisão preventiva? Sim. Afastamento do agressor? Sim. Proibição de contactos comigo? Também. Neste caso, em que o perigo é que as agressões continuem? Sim. É o juiz de instrução que aplica estas medidas. E agora vão detê-lo? Sim, mas não fica detido por não termos suspeitas que fuja. Temos que o libertar. Então, como pode a polícia apresentá-lo ao juiz? Não pode. Que vão fazer? Notificamo-lo para ir a tribunal no próximo dia útil. Talvez o Ministério Público possa emitir uns mandados de detenção? Não pode. Ou talvez o juiz possa mandar detê-lo? Também não pode. E se faltar? Logo se vê. O crime não admite até prisão preventiva? Admite. Mas a polícia não pode levar o agressor ao juiz? Não pode. Libertá-lo é perigoso para a vítima? É. Mas não pode ser mantido detido? Não pode.” Podia continuar – Como é possível não terem acautelado estas situações?– Ter-se-á querido acabar com as detenções-espectáculo que assistimos em casos mediáticos. É uma má transposição do parágrafo 127.º do CPP alemão. O problema dos slogans a partir de casos concretos é que não se aplicam à generalidade das situações. Há mais motivos, além do perigo de fuga, para que alguém seja presente ao juiz.– O que propõe?– Devem ser alterados os artigos 257.º/1 e 385.º/1 ou criadas outras normas, em leis avulsas como a nova de segurança interna, para acautelar crimes em execução ou com perigo de continuação actividade criminosa.
OS NÚMEROS DO CRIME- 194 foi o número de homicídios voluntários consumados que as autoridades policiais registaram no ano passado. Um aumento de vinte por cento em comparação com 2005.- 39 mulheres morreram em 2006 em Portugal vítimas de violência doméstica, segundo um relatório da Amnistia Internacional publicado em Maio último.- 14 232 ocorrências de maus tratos a cônjuges registadas pelas autoridades no ano passado. Serão a maioria das queixas por agressões apresentadas.- 80 milhões de euros serão investidos até 2013 contra a discriminação e a exclusão sociais, projectos que têm como objectivo a protecção de mulheres vítimas de violência e crianças.- 360 milhões de euros por ano são os custos suportados pela economia portuguesa pelos dias de baixa a que ficam sujeitas as vítimas de violência doméstica.- 4330 novos processos registados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima durante o primeiro semestre deste ano. Lisboa, com 1359 casos, representa 31,4 por cento das ocorrências.- 87% das vítimas são mulheres com idades entre os 26 e os 45 anos. O agressor, também em 87 por cento dos casos é homem e tem entre 26 e 55 anos.- 86% por cento dos crimes cometidos são de violência doméstica, na qual os maus tratos físicos e psicológicos assumem papel de destaque.

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